Arpilleras



Acordou com a imagem das pulgas caminhando no pelo acinzentado do animal.
Algo lhe roubava a energia. Ele veio miúdo e macio, como gostavam de ser um com o outro, ela não podia abrir. Estava atenta ao corpo que queria fechar. 
Sim, algo do ventre lhe pedia que respirasse. Estava a dias sem ar e algo lhe incomodava a liberdade.
Pediu as asas vermelhas que lhe abrissem as costas e mostrassem como sanar a falta do espaço que lhe acontecia no peito.
Algo nas mãos suaram e os pulsos instaram a doer e adormecer.
Lembrou dos desafios de administrar dons e talentos para que as mãos não adoecessem.
Disse não. Estava aprendendo a dizer.
Fez nova organização do corpo e das partes que não se encaixavam dentro. Fazia uma daquelas revoluções miúdas tão necessárias à sua ecologia interior.
Precisava escrever. Assim nutria o espaço que só a ela lhe cabia compreender.
Buscou por onde fazer o entendimento urgente acontecer e lhe surgiu a palavra.
Resiliência.
Vira que já lhe acontecia no corpo o gesto de retornar ao essencial após tantos convites que lhe alteraram o rosto. Adaptação elástica de si mesma. Sim, lhe havia acontecido esse jeito de navegar terra firme aos que vencem experiências de quase morte.
Resiliente se encontrava inteira. Nenhuma parte a menos recobrada, mas alterada das mudanças bruscas e assustadoras que sofrera.
Acordara para fazer e ser. Sentada abraçada por xícaras de café que não terminavam nunca, pôs-se a bordar para falar, foi então que um grande coração anatômico de mulher se mostrou na arpillera e ela já não era mais a mesma.
A palavra pediu pela linha e a carne se fez mais macia, estancada das feridas guardadas. Uma boneca azul como o mar ganhou forma e de seu corpo linhas grossas de um sangue resiliente nutriam o coração cansado da jornada.
Ela viveu.
 






Comentários

Postagens mais visitadas