A curra
A curra
Ontem a panela queimou.
O chá secou enquanto dois caras da Eletropaulo tocavam a
campainha da casa.
Posso ver a Luz moça? Ela hesitante, falou da janelinha da
porta com o homem que portava uniforme de outra empresa. Pode ver. Ele
representou interesse abrindo a porta da caixa de luz e disse baforando bem de
perto- É corte viu.
O que?
Corta. Qualidade incongruente daquelas peças de teatro
pós-dramático onde o gesto pode divergir com o sentido da fala.
Os homens meteram-se a torturar a esperança de qualquer
coerência naquela manhã. Estendendo ereta a escada ao poste que sustentava todos
os gatos e cruzamentos possíveis de pacotes não pagos de TV a cabo daquela
vila.
A moça não era de se preocupar com ameaças e cenas de
constrangimento moral. Havia lido Nietzsche e Foucault; se sentia além desses
mecanismos de pequeno-grande poder.
A moça acreditava ser livre, que nada devia ao o que se
preocupar. O atraso estava em dia.
Com certa excitação, ignoraram a mulher de cabelos
cacheados, meio nordestina de cara. Eles seguiram com o gesto de corte, cessando
a luz da casa 105 como num gozo afirmativo e breve de estupro.
Ela queria conversar. Amigo por favor, a conta vence hoje.
Vou pagar hoje. É um mal estendido, está vendo? Vocês não podem fazer isso.
Amanhã estará pago moço.
Pode guardar isso que eu também tenho moça. Moço o senhor
não está me ouvindo.
Trabalhavam por um salário de merda, numa empresa de merda.
Reproduzindo frases de uma empresa que mal sabia da merda da dimensão de suas
vidas sem contorno, sem carne, sem férias, sem ossos. Nada amoroso lhes tocava
a medula, de colhões sem brio sendo molestados pela máquina que espreme até não
sobrar nada além do cinismo e 80 kilos de ódio afundando na cama todos os dias. Vidas impossíveis, invisíveis à diretoria de
merda daquele monopólio.
Surdos de habituar-se ao não tercerizado, tanta porta
fechada calando o direito do corpo de cagar e respirar alguma paz cabível. Tanta exclusão de mau hálito dessa boca
burocrática devorando a cara do mundo uniformizado, controlado, deixando o
cidadão burro de dar murro sem o menor sinal de fértil de mudança.
Estupro é o ódio cuspido desses dois. Os dois caras da
Eletropaulo, recalcados de serem enrabados com a desconstrução monetária mês a
mês. Os dois caras, cansados, da Eletropaulo, de não existir o porvir, aguardam
os dias de poder cortar o fio a machado.
Apagar a luz das casas, deixar tudo revirado, calado, botar
no escuro o estupro daqueles que ainda tem voz e educação pra ler e entender
essa merda de situação.
Sem olhar a quem, os dois caras da Eletropaulo seguram a
esperança pela costela enquanto o outro tampa a sua boca, fodendo com a
justiça.
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